Editorial de Domingo
Zequinha de Abreu
Certa vez declarei aqui mesmo no piano clássico que hoje em dia, só nas horas da angustia e da saudade ouso escrever minhas bobagens e soltá-las ao vento, em busca de vossos ouvidos amistosos e complacentes. Poupando-vos, no mais das vezes, dessas coisinhas tão insignificantes. Insignificantes como gotinhas de lágrimas que se agigantam quando de nossas faces rolam, parecendo oceanos imensuráveis... Quando menino, lá em casa, ou melhor, no Conservatório Leonie Ehret, éramos levados a tudo estudar: Piano, Violino, Flauta e até Acordeom, isso na música, pois também aprendíamos Desenho, Pintura (todas as Escolas), e até Artesanato, praticava-se um bocado, de tudo um pouco. Mas, tudo isso, só o fazíamos se nos desse prazer. Era essa a lei, essa a ordem única, tudo por amor ao Belo, ao Transcendental, à Arte, ao Pensamento. Cultuávamos o pensar, e, por excelência o livre-pensar.
Agora, cada um que escolhesse o que quisesse para se especializar e rumasse seu caminho. Escolhi o meu, todos sabem, mas, não sem passar por essas generalidades que citei acima, inclusive o Acordeom. Sim, o velho Acordeom pra mim sempre fôra uma brincadeira de muito mau gosto, naquele tempo estava na moda, levada aos píncaros da fama graças ao grande acordeonista Mário Mascarenhas, mas para mim, sempre foi uma brincadeira. Achava-o um troço meio desajeitado, grande demais para uma criança, (um Scandalli de 120 baixos, se não me engano, da minha mãe, que deus a tenha).
O que mais me irritava nos Acordeons eram as teclas esquerdas, ou melhor, os botões da mão esquerda, que trazem os acordes prontinhos. Por essa época não gostava muito da polifonia (sempre preferi o contraponto, desde pequeno). E, o tal instrumento estava fadado eternamente a polifonia pelo menos estruturalmente, já que na realidade tive oportunidade de ouvir gente fazer verdadeiras peripécias malabarísticas. Peripécias malabarísticas contrapontísticas! Tocar uma fuga de Bach num acordeom pra mim, parece mais mágica que outra coisa! Miraculosa peripécia, diga-se.
Pois bem, hoje, mexendo inadvertidamente em meus parcos alfarrábios, que escaparam do último auto de fé do qual foram vitimas, acabou caindo em minhas mãos a capa dum livro de Zequinha de Abreu. Partituras de Zequinha de Abreu transcritas para acordeom pelo grande Mário Mascarenhas. Pronto, era o que faltava
De repente fui transportado ao passado, aos meus tempos de menino, àquela enorme caixa preta, cujo interior encerrava um magnífico Scandalli escarlate, repleto de detalhes dourados e prateados, com um lindo teclado em tonalidade marfim de um lado, e do outro, uma galeria de nada menos que cento e vinte botões de um negro profundamente brilhante. Separados por um indescritível fole encarnado rutilante, tendo em cada um de seus plissados, a arredondar-lhe os cantos, um lindo contorno de metal prateado, conferindo-lhe nobreza e dignidade...
Que visão elegante e nobre acabo de ter. Que sensação auspiciosa e sutil acaba de invadir todo meu ser... O que foi para mim brincadeira chula reveste-se hoje de magnitude imensurável. Ah! O que não daria para ouvir mais uma vez um mero acorde daquele tão nobre instrumento...
Bem amigos, para ilustrar este momento, ofereço-vos Zequinha de Abreu, não através dum acordeom, mas ao piano a quatro mãos, e que mãos: Jacques Klein e Ezequiel Moreira.
O programa é de uma sublimidade incrível, causando facilmente o fluir de uma lágrima sorrateira aos corações mais sensíveis, portanto cuidado!
Um excelente domingo leitor amigo é o que desejamos . E mais, uma semana repleta de realizações. E que a música de Zequinha de Abreu sirva como instrumento de evocação aos bons e sublimes espíritos que tudo percebem e em tudo nos assistem! Um forte abraço.
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