EDITORIAL DE DOMINGO
REPOSTED
Escrevo muito mal, mal e parcamente, devo dizer. Fruto de muitas circunstâncias: Reduzido vocabulário; despreparo geral no domínio da língua nacional; falta de vocação para a lide literária; falta de assunto, resultado duma vidinha vulgar e miserável; incapacidade criativa, é, pois o bom escritor, facilmente cria miríades de bons textos mesmo na ausência completa de inspiração, basta passar a pena pelas páginas do caderno e, animada aparentemente por seres invisíveis, voa a mão graciosa e decidida sobre a folha, imprimindo-a geralmente, com verdadeiras jóias literárias.
Se existe realmente uma coisa que não sei fazer é escrever. Por que o faço? Ora, você já deve estar farto de ouvir-me dizer que, nos dias de hoje, só de raro em raro e nas horas da saudade e da angustia, ouso escrever minhas bobagens e soltá-las ao vento, em busca de ouvidos complacentes... ***
Costumava dizer que o pianista tem duas memórias, uma mental outra digital. Na verdade esse negócio de digital inventei agora mesmo, pra deixar o texto mais elegante. O que sempre digo mesmo é que, parece-me que pianistas, como qualquer outro instrumentista, tem duas memórias, uma na cabeça, no cérebro, outra nas mãos, nas pontas dos dedos. Quando começa a falhar a cabeça, os dedos acodem.
Tenho exemplos na família, mãe e avó, tocaram até idade avançada, ambas franzinas e um tanto encurvadas pelo peso do odioso e insaciável tempo, aparentemente demonstravam que nem poderiam acionar as teclas, entretanto, quando começavam a dedilhar o piano... O resultado era maravilhoso, pareciam crianças cheias de vigor, técnica esmerada, robusta jovialidade e muito virtuosismo. Agilidade nos dedos para dar e vender! Minha mãe dizia que não lembrava mais das peças, e enxergar a partitura a uma distancia que nem é perto nem longe, 75 centímetros por aí, entre os óculos e o porta partituras, nem se fala, é tarefa ingrata, hoje sei. E nesse exato momento, nesse momento mágico, acodia a memória digital, a memória da ponta dos dedos.
Tal qual o bom escritor, cuja pena voa ágil sobre a folha, as mãos do pianista levitam com elegância por sobre o teclado, parecendo nem ferir as teclas, puro virtuosismo digital, pura interpretação digital, memória digital. Tão natural como o ato de respirar, talvez devesse mudar o termo digital por espiritual.
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Há anos desfiz-me dum velho amigo, o piano, inda tenho um pequeno órgão, desses modernos, tão cheio de recursos que nem tem graça tocá-lo. Nem precisa. O bicho toca sozinho... Dentre muitos que tive, restou-me este, resultado duma oferta em forma de presente. Vive abandonado num canto empoeirado, num velho quarto desta velha casa desta velha fazenda onde moro.
Hoje resolvi bater-lhe a poeira; batí-a, limpei-o, liguei-o... Tentei tocá-lo, comecei com coisa simples, uma invenção a duas vozes, uma a três, alguns prelúdios, finalmente o Cravo bem Temperado. Sequer cheguei ao stretto...
Hoje descobri que a memória digital também se acaba...
Opa, mas, esta história não pode se acabar assim triste, principalmente numa época tão natalina não é? Outra que não sou nenhum velho gagá. Não sou nenhum menino, é certo, mas ainda não estou gagá.
Até o final do ano irei à cidade renovar minha receita ótica, com novos óculos, tenho certeza, rapidinho recupero a tal memória digital, se não, crio outra. Afinal, somos brasileiros, não?
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E o que é que tem a ver, (o amigo leitor deve se estar perguntando) tudo isso que esse maluco está contando com o grande Elomar? Pois é, isso tudo começou com ele. Estava hoje mexendo em velhos alfarrábios quando me deparei com um dos maiores, se não o maior registro da historiografia musical brasileira: O disco Nas Barrancas do Rio Gavião de Elomar, lançado há 33 anos, em 1976 a simples visualização da capa já me enviou a épocas gloriosas, num passado deslumbrante.
A audição de suas músicas, todas profundamente transcendentais, Profundamente medievais, estranhamente cavaleirescas e nordestinas, elevaram-me a um estado vibracional bem próximo àquele dos santos tibetanos, acho. Foi esse retorno ao passado que me levou hoje a, inadvertidamente, limpar o órgão eletrônico.
Ora o magnífico Elomar é meu colega de profissão. Músico? Não, não me atrevo à comparação. Criador de bodes? Sim, ele, criador de bodes no interior de Alagoas e eu, criador aqui no meu sertão...
Agora sem brincadeiras. Na minha opinião sincera, Elomar é um dos maiores músicos nascidos nesta terra, tudo que se diga dele é mera vaidade crítica, pelo que, vou-me abster de maiores, inúteis e improfícuos comentários.
Deixo convosco, entretanto, em forma de homenagem a este músico de imensurável grandeza, estes fabulosos CD's "Na quadrada das Águas Perdidas" e "Nas Barrancas do Rio Gavião". Os quais recomendo, principalmente aos mais jovens que porventura não o conheçam, (o que é muito improvável), que o baixem imediatamente a fim de engendrarem uma inusitada viagem a uma forma musical dum distante Nordeste Medieval brasileiro, num tempo em que nem Brasil existia ainda...
Esperamos que todos tenham uma formidável semana, repleta de saúde e paz.Desejamos que a sublime música de Elomar sirva de evocação às superiores entidades que sempre se dignam em acudir-nos!
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