quarta-feira, 18 de junho de 2014

Luiz Gonzaga – A Nova Jerusalém


 

Luiz Gonzaga – A Nova Jerusalém

 

...- Você acredita, velhinha, que o Ceará já fosse uma terra do inferno?-

...-Vê-se claramente que o *planalto que vem do Piauí sempre em suave elevação, como é de lei natural, é característico dos vales, - talha-se abruptamente, quase a prumo numa altura de cinco a seis milhas, para formar em baixo, e ali até o mar, uma terra pedregosa, seca, estéril, inóspita!... onde só tem gasalhado as famílias saxícolas,- tanto animais, como vegetais: - caraguatás e cardos, répteis venenosos e tigres carniceiros!
- Mesmo dividido como está o tempo em duas estações, quem fará do Ceará uma terra habitável, percorrendo-o na estação seca, de julho a janeiro, quando a vida só se manifesta espontânea e saltitante de fronde a fronde das plantas isoladas, nos fundos que se chamam vales, e nas encostas, que se chamam montes? Quando a canícula produz revérberos nas rochas e nos penedos que estonteiam a vista e crudelizam o ar? Quando a vida adventícia passa por todas as gamas da desolação e da dor?
- Se o inferno é horrível, moço, o Ceará, nas estações secas, caracteriza-se por ele!... A Natureza imóvel, em prol da Natureza móvel, parece fazer calar o murmurinho do inferno... e isto já é muito!...
- As primeiras chuvas do inverno vestem o Ceará de trajos primaveris, qual uma noiva louçã!...
- Os prados tomam um manto verdoenho, salpintado de florinhas mimosas de mil variadas cores!...
- As árvores, com as suas frondes altaneiras, cobrindo as festas dos ninhos da família alada, balouçam-se sorridentes, aos dourados raios do sol!... Os ribeiris brandos, nos seus murmúrios doces, coando-se nos rios maiores que serpeiam por entre as florestas, até despejarem no mar, como artérias de um corpo em efervescência, por através de massas fibrosas, se ondulam até o coração, - tomam os harpejos de um seio imenso de virgem!...
- Os animais, pascendo nos campos deleitosos e nas sombrosas e poéticas savanas, mugem alegres pelo cio de seus amores! Os palmípedes vêm de longe fazer as festas de seus conúbios, nas lagoas sem fundo, cobertas de juncais e aguapés!... Os passarinhos, nas sobras frescas dos galhos e nas cúpulas das carnaubeiras, em partituras harmoniosas que deleitam, cantam às veigas e às virações que passam!... O zéfiro brando das tardes e a brisa fresca das manhãs vão ciciar, por entre o pitoresco da ramagem, os idílios doces roubados dos tálamos e das devesas cultivadas!...
- E nessa quadra, moço, o Ceará tomas as feições da cara de um mundo divinamente belo, cujo sorriso é o poema mais perfeito da criação, onde são ninfas as mulheres impolutas; são dríades as donzelas de seios puros, e faunos os homens de amores castos!...
- E não é penoso e triste, moço, passar-se dessas feições que nos fazem pensar no Céu, para os característicos da terribilidade de um inferno? -
- É e demais, velhinha, - disse-lhe eu...

 João Miguel da Fonseca Lobo ( A Camponesa, 1ª edição - 1914)

  (*)Chapada da Ibiapaba


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